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Jornal da Escola Secundária da Boa Nova, Leça da P
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EUSOU A KALASHNIKOV DA BOA NOVA
Por Biblioteca António Nobre (Administrador do Jornal), em 2015/01/151009 leram | 2 comentários | 163 gostam
Eis o texto que Pedro Guilherme-Moreira publicou no seu blog, a propósito da sua vinda à nossa escola!
http://ignorancia.blogspot.pt/2015/01/eu-sou-kalashnikov-da-boa-nova.html
Mais ou menos no momento em que os irmãos Kouachi entravam pelo Charlie Hebdo, no dia 7 de Janeiro de 2015, e degolavam a liberdade, eu e muitas dezenas de professores e alunos enchíamos a Biblioteca António Nobre, da Escola Secundária da Boa Nova, em Leça da Palmeira, e é no próprio nome da escola, a que Leça e o grande Siza ficarão para sempre indelevelmente ligados, que começam as ironias. Eu ia escrever que estávamos anormalmente desligados do mundo, mas talvez estivéssemos mais ligados do que a maioria das pessoas que acompanhavam em directo o drama de Paris, que é como agora se faz. Creio que cada uma daquelas dezenas de pessoas que estavam na biblioteca terá tido a mesma sensação de estranheza quando soube do que se tinha passado: desta vez, eu não estava a viver isto em directo, estava mergulhado numa outra realidade, num outro mundo. Um mundo que está antes ou depois de hoje? Ironia das ironias, a sessão era centrada no meu primeiro livro publicado, "A manhã do mundo", e quando passou o vídeo da segunda parte do booktrailer (que pode ser visto aqui), todas as memórias do "trauma" colectivo de acompanhar a chacina de três mil pessoas no coração do mundo emergiram. Do mesmo modo, aqueles para quem o 11 de Setembro é apenas um facto histórico, a maioria dos que enchiam aquela bilbioteca, vão ter a memória "traumática" da execução do polícia Ahmed pelos irmãos Kouachi e o eco da máxima "Je suis Charlie". A bem dizer, o pensamento que me passou pela cabeça, enquanto "revia" os aviões a bater nas torres e estar a ruir, foi que, apesar dos atentados de Londres e Madrid, nunca mais tinha havido uma semana de luto mundial. E não sabia de Paris. Nenhum de nós soube até às 13h, pelo menos.

O que se passou em Paris mostra que os "holocaustos pessoais" não se instalam em cada um de nós pelo número de mortos: em termos estatísticos, as pessoas que morreram em França pela nossa liberdade não se comparam aos três mil mortos de 2001, mas também os três mil mortos de 2001 não se comparavam aos dois milhões de mortos civis da guerra do vietname, às seis milhões de vítimas do nazismo, às oito milhões de vítimas do Estalinismo ou às duas milhões de vítimas dos Khmer Vermelhos, entre outros. Ainda ontem um comando de rebeldes chacinou um autocarro de inocentes na Ucrância, estão a morrer refugiados de frio porque está a never nos campos. De fome, morrem todos os dias, quase quinze mil (!!!) crianças, seiscentas por hora, dez por minuto, uma a cada seis segundos - e isto devia chegar para que nos uníssemos todos em vez de andarmos a matar ou a insultar em nome de coisas secundárias, fúteis. A condição humana não começa em deus ou profeta nenhum: começa no Homem, mesmo para quem tem fé, e só depois sobe aos céus. A verdade é que cada vida perdida desta forma importa. O "holocausto pessoal" é o abismo das vidas interrompidas sem sentido - pelo menos não com o sentido primeiro e último da vida.


Por causa disto, não consigo deixar de pensar nos irmãos Kouachi e no que os levou a decapitar a voz do mundo: terão sido despeitados, abandonados, ostracizados, mas há muitos, cada vez mais, que são levados para campos radicais ainda bebés e são criados num ódio vazio, que para eles existirá desde sempre e para todo o sempre. Mas os irmãos Kouachi andaram em escolas europeias como a Boa Nova, e é precisamente nas escolas e nas universidades que está o único foco possível de toda a arte: a explicação de que as janelas para o mundo não estão só nos ecrãs retroiluminados, que o ponto de partida zero - não sei nada, não sou nada, vou trabalhar para todos e para tudo - de cada dia é o único possível. Nem todos têm de ser artistas e escritores, mas todos têm de perceber que a arte nos adianta o sentido da vida e nos diminui os momentos de deserto, tédio e solidão. E também nos dá amor: e é óbvio, flagrante, ainda que pareça uma bandeira com excesso de doçura e nada "cool", que o défice do mundo não é financeiro, mas de afecto. Hoje ouvi um líder muçulmano ocidental explicar à CNN como distinguir as boas ou más intenções de qualquer pessoa que actua em nome da religião: "the false ones intend arm", ou seja, os impostores têm sempre o Mal como objectivo imediato, e só através do Mal conseguem "vingar" as convicções que anunciam. Este Mal nem sempre é declarado e contamina as sociedades ocidentais: às vezes vem até disfarçado de Bem. Mas não há engano possível no amor incondicional, que não é só o dos pais, o dos amigos, é muitas vezes o dos nossos educadores, o dos nossos professores, o dos nossos cuidadores.


Na Escola da Boa Nova sei que me afastaram mais dos desertos do mundo e me encheram de afecto - e eu espero ter deixado mais motivos de estilhaço das solidões e das frustrações e músculos para abrir mais janelas e fazer mais coisas boas, como as entregas de 540kg de géneros em 34 cabazes de natal aos desfavorecidos, como a Boa Nova fez este ano. Mesmo o André da carapinha, sem saber, me ofereceu uma gargalhada de tal forma contagiante ao fim do primeiro parágrafo da glosa do Macklamore, que contaminou toda a sala e me deixou uma memória que não se apaga. E são estas memórias que suprimem as más. Vamos fazer isto mais vezes, meninos, não nos percamos um dos outros. Do fundo da sala, a luz quase absoluta da Filomena, a emoção e o empenho do Miguel e do Paulo, do meu lado esquerdo a voz trémula e nervosa (estes nervos são empenho, e também comovem, sabes?) do Nuno a apresentar-me, a leitura segura da Margarida, a pergunta ampla e forte da Ana Guilherme (tinhas te chamar Guilherme:), a infinita curiosidade do Ricardo (cada pergunta tua merecia uma hora de fogo cruzado), o incomensurável encanto da Lígia e as gerações de apaixonados pela língua que eu lia nos olhos dela, a doçura da minha anfitriã Cecília, a malandrice da Isabel loira, a intensidade da Manela, o absoluto encantamento (e conhecimento) do Henrique e do João, e mais, e mais, e mais. São muitos mais o que aqui não tiveram o nome. Estou-lhes grato. E agora somos responsáveis por isto ter valido, por não nos esquecermos.


Como é que sai incólume disto? Não sai. Nunca se sai.


Mas é por eles, e por causa deles, que eu agora sou a Boa Nova e o guerrilheiro das kalashnikovs que disparam as palavras que lhes entram pelo corpo e não os deixam adormecer de tédio ou enfurecer de solidão e abandono.


E nunca deixarão


Comentários
Por Filomena Morais (Professora), em 2015/01/15
Há ironias estranhas neste mundo complexo em que vivemos. Foi muito bom conversarmos com este escritor sobre ironias, estranhezas e simplicidades.
Por Lígia Carvalho (Professora), em 2015/01/28
Nestes tempos de intolerância, a força das palavras volta a ter sentido num testemunho de alguém que faz seu o ofício de escritor.Possamos nós, professores, ser os que abrem a janela para o mundo.
No meu abraço, receba o meu sincero reconhecimento

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