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A “BIDA” DO TONINHO
Por Paula Costa (Professora), em 2015/02/162191 leram | 0 comentários | 555 gostam
Era um dia claro e bonito e toda a gente sorria. Havia uma única razão... Era dia do Pai.
O Martim estava triste, o seu pai tinha falecido nos mares da terra em que agora viviam, a Póvoa de Varzim. A criança queria fazer um desenho sobre a vida dele.
    -Avô - chamou o Martim -, quero fazer um desenho para o meu pai...Mas não sei nada sobre a sua vida …
    - Ó Martim, dá-lhe uma flor!- disse o avô disfarçando as lágrimas.
   - Por favor, avô! mas eu quero… Ajuda-me! – insistiu o rapaz.
   - És teimoso como o teu pai… Mas eu conto-te, não te preocupes!
   - Ainda bem, avô!
   - Senta-te e acalma-te! O teu pai nasceu numa manhã muito fria. Cresceu depressa e muito bem. Como era poveiro, cedo se dedicou à pesca. Tinha aquele olhar de “eu consigo” e sorria sempre. Eu ajudei-o muito nos seus primeiros ensaios. Saltava para as furnecas da rocha e lançava a cana. A boiada, a péla, a zocha, a forma, a entola, entre outras, eram desportos que divertiam as crianças daquela altura!
   - Mas eu não sei jogar à péla, avô, nem sei o que é. Eu e os meus amigos costumamos jogar computador e tablet, nunca ouvi falar disso!
   - Martim, sabes que naquela altura não havia nada disso, era tudo muito diferente… À péla, ensino-te a jogar um dia, é muito complicado e muito divertido! Mas deixa-me continuar, meu netinho, porque assim não acabo hoje!
   - Está bem avô, prossegue!
   - Nessa altura, ele, em breve, ia começar a embarcar no mar, por isso, comecei-lhe a contar umas lendas engraçadas e por vezes assustadoras.
   - Naquela altura era tudo muito engraçado… Ah!Ah!Ah! - riu o avô muito alto. A época da pesca foi das melhores e piores da vida do teu pai. Num dia muito frio, ele vestiu-se rapidamente porque dali a nada entrariam a bordo. Eu expliquei-lhe que ia na safra da sardinha. Chegámos ao porto e o teu pai avistou, de imediato, o seu barco a “Lancha pequena”. Os tripulantes diziam: - “ As nossas enviadas tomaram cem milheiros.”
   Os outros tripulantes do outro barco afirmavam, também: -“ A nossa lancha tomou cento e cinquenta milheiros”
   Por fim, o mestre deu ordem de “ bota abaixo”. De repente, toda a gente, se agitou bruscamente, e todos os que estavam na praia foram direitos a casa buscar todos os utensílios precisos para a partida. O teu pai perdeu-me de vista, mas, pensando que eu não o estava a ver, observei que ele se conteve para não chorar. Enfim… Tudo retomou os seus lugares, e um silêncio profundo envolveu-os. O mestre era o meu irmão, o Joaquim. Como ritual de partida, ele ergueu as mãos e, levantando a voz, disse:
   - “ Um padre-nosso pelos que morreram aqui!”
   Os tripulantes ergueram as mãos, embora outros apenas as cruzassem, e rezaram baixinho. Aí, o teu pai localizou-me e pisquei-lhe o olho, com a intenção de transmitir calma. O Joaquim voltou de novo a dizer:
   - “ Um padre-nosso ao Senhor da Agonia que nos leve e nos traga a salvamento”.
   Finalmente, o barco começou a navegar. O teu pai ia a remar com os seus amigos, que ensaiaram com ele. Passado um dia, regressou a lancha onde o teu pai, mais conhecido pelo Toninho, tinha navegado. Vinha suado e cansado. Tinha um olhar enjoado, mas ainda sorria como todos os outros! O mestre, contente com o sucedido, exclamou:
   - Boa pesca, conseguimos umas das melhores desde que eu sou vivo. Um padre-nosso pelos que não aguentaram e um “Ala Arriba” para nós!
    Muitas outras pescas se seguiram, mas houve uma que foi muito especial, pois foi quando o teu pai conheceu a tua mãe. Não houve muito amor à primeira vista, mas quando se conheceram, prometeram-se um ao outro. A tua mãe, Margarida, estava sentada a ver os barcos a chegar, quando o teu pai apareceu bem ferido, porque o remo o tinha aleijado e “rasgado” a pele. Ela foi a correr socorrê-lo. Era uma mulher linda de olhos negros como a noite, cabelos compridos e um rosto macio e acolhedor. Eu conhecia Margarida, era filha do mestre João, um dos mestres mais valentes aqui da Póvoa.
   - E o pai sangrou muito, avô?
   - Não muito, netinho. A Margarida cuidou muito bem dele. Ele mal conseguia respirar e, por isso, ela apressou-se para o tratar. Tomou-o nos braços e, com um pouco de algodão que por acaso tinha no bolso, enxugou o sangue que escorria, escorria e escorria…Eu não sabia de nada, mas o mestre João, que, por coincidência, tinha sido o mestre nessa pesca, foi a correr à minha porta e alertou-me do sucedido. Mas, quando lá cheguei, só vi a tua mãe a sorrir para o teu pai com um brilhozinho nos olhos. Daí em diante, os teus pais encontraram- se várias vezes para se conhecerem, pois nos seus corações surgiu o interesse. O Toninho tinha 20 anos, mas a Margarida tinha, apenas, 18 anos. Eles começaram a apaixonar-se cada vez mais um pelo outro… E chegou o dia em que eu e a tua avó, juntamente com os pais da Margarida decidimos que já estava na altura certa para darem o passo seguinte e casarem, mas, antes desta união, o Toninho teve de fazer os usos e costumes da classe, ou seja, o teu pai, teve de fazer uma arribada a qualquer praia espanhola, trouxe à sua noiva um listrão - cordão grosso, em cores, com borlas na ponta, que servia de faixa para arregaçar as saias. Mal o barco abicou, o rapaz saltou para fora, e ali mesmo, na praia, fez a oferta. Foi muito divertido e a tua mãe ficou felicíssima.
   Depois deste acontecimento, dei-lhe um quarto do que ganhava, para que, pudessem criar um lar. Durante a época de noivado, a todas as festas em que comparecesse toda a gente do mar, o Toninho não podia ir sem a sua Margarida. Eles tinham de mostrar ao público que andavam sempre unidos. Passado algum tempo, o teu pai foi na primeira ceifa ao mar para trazer o pescado para a boda e tudo correu bem, felizmente. Três semanas depois, ou domingos, como dizíamos antigamente, chegou o dia do casamento. Tua mãe estava deslumbrante. Os seus olhos negros como o carvão, ardiam de felicidade. Juntamente com ela, seguiam as duas madrinhas, a do teu pai e a dela, que abriram o cortejo lindamente. Ao final da tarde, a Maria e o Abel, os padrinhos do noivo, ofereceram redes e utensílios marítimos para mais próspero se tornar o casal. Resumindo, o casamento foi belo e calmo e o teu pai ficou bem entregue à tua mãe.
   Os anos foram passando e os teus pais cada vez mais queriam uma criança, depois de muitas esperanças levantadas, a tua mãe engravidou. Eu fiquei bastante feliz, ia ter um netinho. Mas quando tudo parecia estar a correr bem, na verdade estavam a vir maus dias e maus agouros.
   Era uma manhã muito fria e as nuvens do céu estavam escuras e prometiam, em breve, chuva. Mas Toninho não hesitou e embarcou. Depois de uma verdadeira batalha do mar contra o barco e a chuva contra os homens, conseguiram chegar à costa, embora não estivesse toda a gente. Mas o teu pai estava vivo, porém não vinha com boa saúde. Eu não pude acreditar no estado em que ele vinha. Estava gelado, sangrava pelos lábios e a cara estava roxa do frio. Quando chegou a casa, tomou um banho bem quente e de seguida chamaram um médico, pois não parava de sangrar e estava com 40º de febre. Ele não deu boas notícias, porque o teu pai tinha uma pneumonia e nessa altura não havia cura, pois necessitava de uma operação. Todos temíamos a sua morte. A tua mãe não queria acreditar, era uma coisa triste para uma família feliz. Os dias passavam, tu estavas quase a nascer e o teu pai não dava sinais de melhoras. Chamamos o médico novamente, pois necessitávamos de saber se ainda havia alguma esperança, ou se teríamos de pensar o pior. Ele demorou algum tempo a dar-nos notícias, mas quando as deu preferíamos nem as ter ouvido. Toninho tinha, apenas, dez dias de vida. O médico saiu e, sendo poveiros, tivemos a preocupação de o preparar para a morte. Depois de confessar e comungar, Toninho adormeceu, estava exausto de tanta agitação e desespero. Mas, de repente, tua mãe gritou desesperadamente, tu estavas prestes a nascer. Peguei-lhe cuidadosamente e deitei-a em cima da sua cama. Passado pouco, lá estavas tu. Eras igual ao teu pai, sorrias e choravas. Foi ótimo teres nascido antes de Toninho morrer, porque ainda te pôde ver. Deus estava connosco nesse momento. As noites passavam e a tristeza apoderava-se da nossa alma, mas como em pouco tempo o meu filho ia falecer, forramos as paredes da sala de preto e, na porta de casa, colocámos uma cruz, para que os que ali passassem, rezassem por ele. O funeral foi muito triste, todos choravam em alto som, recordando a vida dele e o seu amor à família. Durante oito dias, toda a família andou cabisbaixa e triste. A morte de Toninho ficou gravada nas nossas memórias, mas a vida tinha que prosseguir.
   - É muito triste avô! - exclamou o Martim, enxugando as lágrimas.
   - Mas todos superámos isso, apesar de ser uma morte…- continuou o avô.
   - Já sei! O desenho para o meu pai vai ficar lindo!
   E dizendo isto, retirou-se de onde estava, pegou numa folha e começou a desenhar. Primeiro traçou cinco quadrados, de modo a ficar preenchida e, em cada um, desenhou as épocas de que o avô falou.
   Nessa mesma tarde, quando foi ao cemitério, pousou o desenho sob a campa e, quando ninguém estava a ver, uma sombra igual ao seu pai, apareceu e agradeceu-lhe. À noite, o Martim só pensava naquilo e no estranho que era.
   A partir desse dia, o rapaz insistia com a família para ir visitar o pai. E sabem o que fazia? Sentava- se ao lado da campa e contava-lhe como tinha sido o seu dia, e quando acabava a sombra aparecia e, acariciando-o, dizia-lhe adeus.

Texto: Margarida Morim
Ilustrações: Jorge Rodrigues, Luís Reis, Margarida Oliveira, Mário Silva, Rafael Andrade, 6º I

                                      

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